Esta é a história de um vinho que já foi trocado por bacalhau, que depois se tornou acre e muito azedo (de sabor e de feitio) e que depois ressuscitou, qual Fénix, para se tornar, nos nossos dias, num dos grandes vinhos do Mundo. À vossa saúde com um copo de Vinho Verde!
Já todos viram nas cartas de vinhos de alguns restaurantes a divisão dos vinhos em Brancos, Tintos e Verdes. Actualmente é um perfeito disparate e em nenhum documento ou publicação oficial ou minimamente informado se vê já essa arrumação… a não ser na ASAE news nº 104, uma publicação daquela polícia criminal dada à estampa em Dezembro de 2016 onde se pode ler “Em Portugal existe um tipo de vinho específico, o vinho verde, que pode ser tinto ou branco, mas devido à sua acentuada acidez pode ser considerado como uma categoria à parte”. Pode ler o original aqui: https://www.asae.gov.pt/newsletter2/asaenews-n-104-dezembro-2016/o-vinho.aspx.
É uma desinformação sem pés nem cabeça e mais ridículo do que isto só o que muito recentemente vimos na carta de vinhos do restaurante de um hotel lisboeta (que já foi de referência) e onde, com destaque, se podia ler “Green Wine”, a par com os tradicionais Red Wine e White Wine.
Com a extraordinária melhoria operada quer na vinha, quer na adega, a partir da última década do século passado, logicamente também todo o vinho português melhorou imenso de qualidade e, especificamente o vinho verde. Facto a que não é alheio o excelente trabalho desenvolvido pela Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes na pessoa do seu presidente Manuel Pinheiro.
Recorde-se que a única razão para que actualmente se chame Vinho Verde é porque ele é produzido na Região Demarcada dos Vinhos Verdes, das mais antigas de Portugal, demarcada e legislada em 1908 juntamente com o Dão, logo a seguir à do Douro (1756).
Nem sempre o vinho verde foi uma bebida de excelência. Os livros estão cheios de exemplos dados por pessoas absolutamente insuspeitas. Mas, valha em abono da verdade, há 400 anos o vinho deveria ser agradável porque os ingleses e outros povos do Norte o trocavam por bacalhau num porto de uma cidade que então se chamava Viana do Foz do Lima e hoje Viana do Castelo.
Nessa época é possível que uma boa parte das uvas fosse proveniente de vinhas, mas com o aumento da população e a divisão da propriedade foi necessário recorrer cada vez mais à técnica da condução em uveira ou enforcado, com as videiras a treparem por árvores plantadas nas extremas dos campos deixando a parte interna para o cultivo de outros bens necessários à alimentação das pessoas.
Há um site que vale a pena ler: Vinha e vinhedos – Alto Minho medieval, da autoria do Doutor António Matos Reis para se ficar a perceber melhor como era o mundo rural desta região há mais de 500 anos.
Duarte Nunes de Leão escreve no seu livro “Descrição do Reino de Portugal”, dado à estampa no ano de 1610, em relação ao vinho que depois se chamará de Verde (actualizámos a grafia): “No Minho se colhe muito centeio e milho e (uma) infinidade de todas as frutas, carnes e
pescados, os melhores e mais saborosos de Espanha, muito vinho do que chamam enforcado de que a gente plebeia se sustenta, que para os nobres se fazem os vinhos riquíssimos de Ribadavia (não a nossa actual Riba de Ave, vila do concelho de Vila Nova de Famalicão, sim a terra galega famosa pelos seus vinhos Albariño, n.a.) e de outros de Galiza sua vizinha e de Monção, onde há muita provisão (onde se produz muito).
É bastante curiosa, já nessa altura, a referência a vinhos para a “gente plebeia”, que seriam os vinhos de enforcado e os vinhos para os nobres, os Alvarinho de Monção, pois claro.
António Barros Cardoso, professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, citando um decreto de 1715 no reinado de D. João V mostra que a nível de impostos também havia uma clara distinção entre os vinhos maus (da vinha de enforcado) e os bons: “Que os vinhos verdes que se produzem na Província do Minho… por serem de menos reputação…” pagavam apenas 3 réis por canada. Refere-se ao mesmo tempo que eram vinhos “que chamaõ de enforcado, & se daõ em arvores, sem cultura” para os distinguir dos restantes vinhos, chamados “de cepa” (vinha baixa) que pagavam 5 réis do mesmo imposto, no caso o “usual”, um imposto extraordinário sobre carne e vinho.
Em 1867, nos tempos do senhor rei D. Luís veio à luz o primeiro relatório assente em bases científicas sobre as vinhas e o vinho em Portugal, mandado elaborar no ano anterior, por decreto do seu ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria João de Andrade Corvo.
O vinho era um produto muitíssimo importante na economia portuguesa, o oídio já tinha aparecido e já tinha feito os seus estragos e era, também, necessário avaliá-los.
Foram encarregues da missão três professores universitários doutorados em Química, visconde de Villa Maior (Júlio Máximo de Oliveira Pimentel) que devia visitar os distritos ao norte do Douro, António Augusto de Aguiar encarregue dos distritos compreendidos entre o Douro e o Tejo, com excepção do distrito de Lisboa e João Ignacio Ferreira Lapa, o distrito de Lisboa e os distritos ao sul do Tejo.
Interessa-nos, neste caso, algumas apreciações feitas pelo visconde de Villa Maior após a suas deambulações por alguns vinhateiros do Minho.
Ele aponta a razão para que a má qualidade das uvas resulte numa má qualidade do vinho, nomeadamente a condução das videiras em enforcado, trepando pelas árvores em volta dos campos onde se semeavam cereais e legumes, terrenos com muita rega e tratados com adubos muito azotados. As uveiras carregavam-se de cachos mas, e citamos, “a abundancía dos succos nutritivos, o excesso de humidade, a
sombra das arvores a que estão associadas, a altura a que dão o fructo,
a influencia do clima geralmente humido e brumoso, pondo de parte ainda a inferioridade das castas adoptadas, tudo faz com que escasseie o assucar nos fructos e com que a maturação destes não chegue nunca a ser completa, resultando dahi necessariamente para o vinho o caracter essencial de verdura, aspereza e pouca espirituosídade que distingue os vinhos do Minho”.
E Villa Maior aponta ainda outra razão para que os cachos não amadureçam completamente: “Por toda a parte ouvimos lastimarem-se os proprietários e lavradores dos contínuos roubos feitos nos seus frutos, e este mal é de tal ordem que a maior parte dos colheiteiros fazem as vindimas estando ainda muito verdes as uvas, com receio do grande roubo a que estão sujeitas, principalmente na proximidade das grandes povoações, onde o fruto encontra fácil venda”. Mas também aponta a falta de cuidado, a falta de limpeza no manuseamento das uvas e as condições absolutamente desastrosas de algumas adegas para o resultado final péssimo.
Teriam de passar quase 150 anos para que o Vinho Verde se tornasse num néctar de eleição, para que, por exemplo, em Portugal, as uvas da casta Alvarinho de Monção e Melgaço se tornassem nas mais bem pagas aos produtores.
Tenho bem presente na memória, na década de 1970, quando ia com o meu sogro visitar alguns clientes lavradores em aldeias na zona de Ponte do Lima, a sensação que me causava a malga de vinho verde que me ofereciam e que eu bebia com sacrifício para não lhes desagradar. Era quase a mesma sensação descrita um século antes por António Augusto de Aguiar numa das suas bem humoradas conferências sobre vinhos realizada durante o ano de 1875 no Teatro da Trindade, em Lisboa. Na que versou o Vinho Verde disse galhofeiro: “Afirmam no Porto, que não se pode beber esta peste (vinho verde tinto) senão de olho fechado, pondo a boca à banda e alçando a perna direita, como quem ao bebê-lo espere o efeito de uma pedrada”.
Também Jaime Batalha Reis, agrónomo, diplomata, geógrafo e publicista, pertencente famosa Geração de 70, terá referido no início dos anos de 1920: “Quando se bebem tais vinhos, dizia um lisboeta, referindo-se aos verdes do Minho, é prudente que alguém nos torça uma orelha, para que a dor que ali se produz nos faça esquecer o acerbo do vinho”, conforme nos conta Bernardino Camilo Cincinato da Costa (1866-1930), um dos maiores estudiosos do vinho português.
A verdade é que, nos cem anos que se seguiram as práticas aconselhadas por alguns estudiosos atrás referidos e ainda por outros, como José Cerqueira Machado ou, mais recentemente, pelo engenheiro agrónomo Amândio Barbedo Galhano (1908 -1991) permitiram que o Vinho Verde se transformasse completamente.
Enólogos como Anselmo Mendes, Luís Cerdeira, empresas como a Soalheiro, a Aveleda e a Sogrape, Adegas Cooperativas como as de Monção e tantos outros conseguiram que o Vinho Verde se tornasse numa fabulosa bebida que de verde só tem o nome da região onde é produzido.